quarta-feira, 13 de setembro de 2017

HISTÓRIA DE SALA DE AULA por Sara Menck






Ao término da aula, foi o último a sair. Passou pela professora e jogou a régua emprestada com toda a força sobre a mesa. "Chata!"

A professora respirou fundo e tentou ser normal:

 _ Esdras, quando alguém nos empresta alguma coisa, precisamos, ao entregar, de agradecer, certo? 
.
 Ele ergueu e abaixou os ombros. Saiu da sala assim. Foi.  Ganhou o espaço do pátio. Caminhou firme, passos fortes.  A professora foi atrás, observando o jeitão malcriado de erguer e abaixar os ombros várias vezes. 

E foi assim enquanto caminhava até a porta de saída, muitas vezes, ergueu e abaixou os ombros.
 
Menino danado. Que fazer com aquilo?

Em silêncio, ela o seguiu.  Menino danado mesmo. Agora ia à sua frente e nos gestos demonstrava  que não fazia caso. 


Ela sacudiu a cabeça; queria saber a melhor maneira de lidar com ele.  Será que fizera errado? Teria sido muito melhor ter entregue o “material”, apesar de toda a grosseria. O menino jamais veria como um presente da professora, apenas como a mais um direito a alguma coisa que a sociedade lhe dava. Não era justo entregar o presente daquela forma. Não, não era!  Ela comprara para fazer um agrado, um carinho àquelas crianças tão carentes de bens materiais e afetos. Mas não era uma coisa que ele deveria arrancar dela com tamanha grosseria. Afinal que culpa ela tinha se professor é feito de carne e osso e nervos também. Até entendia que era criança e queria o presente, mas não daquela forma... Era um presente apenas.

 Ainda uma vez, ergueu e abaixou os ombros... . É assim que caminha a educação!  Ela riu do próprio pensamento ambíguo, caminhando lentamente atrás do garoto.

Ele à sua frente e ela confusa. Que poderia fazer para consertar a situação?  Ele era o tipo que fazia despertar sentimentos barrocos nela. Extremos mesmo.

O primeiro encontro já fora desastroso.  Era uma turminha que precisava de apoio. Mais que apoio, precisavam aprender de verdade para serem aprovados naquele ano. Mas o Esdras era diferente dos demais. Inteligente. Lia e compreendia os mais diversos textos. Era bom na escrita. Não fosse as circunstâncias da sala de aula em seu período normal, não precisaria daquelas aulas no turno inverso.

- Esdras... Bonito nome!! Você sabe a história do seu nome?

- Não, não sei, você é que é a professora é que deve saber!

 Ooo pergunta infeliz! Sabia pouco demais a respeito desse nome. E o pior, o menino era danado. Danado mesmo. Melhor mudar o foco da questão.

-  Eu fui infeliz na pergunta. Gostaria de saber se a sua mãe te contou a respeito do seu nome.

- Não, não contou nada. Conta você. E nome la tem história por acaso?

Ficou pior.  Melhor ser sincera.

- Tem sim. Certos nomes têm história... Bom, vou pesquisar, certo? Esdras é um nome bíblico, mas sei pouco a respeito...

Foi um olhar questionador e terno que a professora recebeu de modo totalmente inesperado:

- E  aí me conta, professora. Agora eu também fiquei curioso.

Depois disso, ele se tornara amável, simpático de verdade. Chegava sorrindo. Cumprimentava. E o melhor, a professora gostava do modo como ele aprendia. Garotinho inteligente. Menino danado. Era bom na leitura. O primeiro a responder. As respostas coerentes.

Mas agora ele caminhava à frente da professora e levantava e abaixava os ombros, depois de usar a sua régua e intitulá-la "chata" . E ela sentia que precisava ensinar algo mais a ele. Outra vez, riu dela mesma. Seria ela a estranha? Como agir para também - de alguma forma - orientar as crianças a serem melhores como pessoas. Não, definitivamente ela não sabia como. Mas, a maioria das vezes, as ações falam mais alto em sala de aula, pensou.

Aquela turminha  apresentava alguns problemas bastante graves, sobretudo, em suas linguagens.  Mas o comportamento era sobremaneira terrível. Eram totalmente inadequados. Gritavam. Falavam palavrões. Mexiam nos pertences dos outros. Dos livros que recebiam para as leituras, arrancavam páginas, realizavam desenhos e escreviam palavras inadequadas em suas páginas. Não sabiam ouvir.  Falavam quase todos ao mesmo tempo. Durante as atividades, quando um precisava de algum objeto e não tinha, solicitava “emprestado” quase sempre de modo inusitado. Algumas vezes, ela via borracha, lápis, apontador, régua ou, até mesmo,  caderno voando pela sala.

Como isso a irritava, resolveu conversar com a turma, a fim de que se comportassem mais príncipes e menos ogros. Não teve sucesso e acabou combinando com eles de que iria comprar alguns desses materiais para presenteá-los, já que não tinham o material completo. Passou uma lista e fizeram as suas solicitações.

E lá estava o menino cheio de querer. Era esperto, aprendia com facilidade e queria bastante. Queria tudo.

 No dia da entrega dos presentes, não apareceu e depois demorou em reaparecer. Assiduidade não era um compromisso dele.

 Um dia, antes de entrar na sala de aula, a professora ouviu um grito:

 - Você vai entregar o meu material hoje?

Entrou e, antes mesmo de falar com as crianças, lá estava o Esdras.

- E o meu material, professora, está surda agora?

- Espera aí... Que material? – Procurou acalmar-se. Precisava disso.

Nossa! Alguns sóis já eram passados após a entrega do presente à turma e ela tinha ali, à sua frente, o menininho do comportamento, no mínimo, estranho. Que que era aquilo? Ele trazia as mãos à cintura, o olhar frio e a voz em tom agudo, mas ela era a professora.

- Esdras, sente-se, por favor! -  Ele queria o que acreditava de direito imediatamente e antes de tudo. – Depois falo com você.

Havia agressão na insistente voz aguda. Não era possível que aquele menino não tinha a menor noção do que fazia. Será que tinha o direito àquele presente? Sim, tinha. A promessa do presente se deu em outra circunstância. Ficou confusa.  Procurou firmeza até acertar a turma.

Naquele momento, eram muito felizes na leitura de um livro. Respirou fundo. Não queria ficar brava, nem brigar com o garoto. Acertou a turma e fizeram o círculo para a leitura.

Bom, ela não trouxera o presente; não via o menino há algumas aulas. E depois que fizera a distribuição do material – réguas, borrachas, lápis, apontadores -  para as crianças, separara alguns para as emergências que fatalmente se dariam ali.  Não poderia hesitar naquele momento. Não, decididamente não era bom errar:

- Esdras, você tem faltado às aulas. Eu já entreguei o material para as crianças. E o seu não está aqui agora. Sente-se, por favor!

- Então vai buscar o meu material agora que estou esperando!

Ela queria gritar com aquela criatura, mas dizem que a paciência é o melhor remédio.  Olhou em seus olhos e tentou ainda uma vez:

- Esdras, sente-se. Depois eu vejo isso -.  Apesar de tudo, ela conhecia bem o tom da autoridade em sua voz.

Acomodou-se contrafeito e irritado. 

E quando iam começar, eis que surge um novo problema: o menino resolvera sentar-se no fundo da sala e debruçara sobre a carteira. Emburrou. Empacou de vez. 

Continuou firme. “Deixem ele lá! Vamos ao texto!” Mas ele batia fortemente  na carteira.

Contou até dez. Precisava manter a calma e arrumar uma saída melhor para não perder o controle. No fundo, tudo o que ele queria era tumultuar a aula. E ela decidira se fazer de calma.

Claro, a vingança de ambas as partes!

A única coisa que ocorreu à professora foi propor uma brincadeira às crianças:

- Vamos fingir que estamos lendo, não olhamos para ele. Quem sabe, assim ele pára .

Durou um tempo o barulho.

 E uma irritação atacou um outro que verdadeiramente esmurrou sua carteira e  berrou com o Esdras . Melhor assim. Ela não entregara o seu estresse. Precisava exercitar uma coisa chamada calma.  Falou mais baixo do que de costume. Teve sorte dessa vez. Foi possível ler e até “esqueceram” a confusão do Esdras que permanecera emburrado lá no fundo da sala.

Que fazer com aquilo? Agradar? Buscar o material e entregar como se nada tivesse acontecido? Não. Não era justo um "prêmio" naquele momento.

 Escolheu fingir que não estava entendendo.

Na hora de realizar as atividades, ele já tinha melhorado, mas caminhou nervosinho até a mesa da professora:

-  Me dá a sua régua, porque eu não tenho régua, viu? 

 Ela precisava ser persistente também na sua opção de modo de agir, mas tentou encontrar alguma doçura na voz. Queria ensinar alguma coisa ao Esdras. Seria possível a calma e o aprender?

- Empresto, mas não se esqueça de me devolver ao final da aula, por favor.

Foi o último a sair e agora caminhava à sua frente com aqueles modos.  Não falou mais nada. Tinha consciência da atitude inadequada durante todo o tempo.  Não olhou para a professora nenhuma vez. 

Era melhor deixá-lo ir, ou seria melhor chamá-lo. Situação confusa. Ele tinha sido muito mal educado. Falar o quê? Poderia apenas levá-lo até a sala dos professores e entregar o material e pronto. Mas e aqueles modos? E aquele mal estar que ela sentia?

Ela precisava respirar e digerir aquela coisa sufocada que entrava pela boca, soava nos ouvidos, descia pelo nariz, explodia nos olhos, corria no sangue, fervia o cérebro e fazia o coração bater diferente.

Queria ir embora. Precisava pensar naquilo tudo. Melhor mesmo esquecer. Conversaria com ele depois. Naquele momento, queria apenas ir embora.  Que sutil estresse consumia o seu corpo. Melhor seria tê-lo feito sair da sala. Manter-se calma foi o seu erro. Às vezes, é melhor estourar... Gritar... Exigir... É difícil manter a autoridade a fim de cuidar não só de um aluno, mas dos outros também. Sofrido manter-se sóbrio quando te obrigam consumir o que te embriaga de diferentes sentimentos. Teria sido melhor se fosse autoritária, rude, áspera... Sim, ela queria sair dali.

 Quando ele dobrou o último canto para a saída do colégio, voltou-se e balançou a mão:

- Tchau, professora!  Até amanhã!

Riu e sorriu e acenou carinhosamente... 
Afinal essa era a profissão que escolhera!! Menino danado. Danado mesmo.


- Até amanhã, Esdras! 



Sara Maria  /   Março de 2012.