quarta-feira, 23 de abril de 2014

AOS AFETOS, E LÁGRIMAS DERRAMADAS NA AUSÊNCIA DA DAMA A QUEM QUERIA por Gregório de Matos




Ardor em firme coração nascido;

Pranto por belos olhos derramado;

Incêndio em mares de água disfarçado;

Rio de neve em fogo convertido:



Tu, que um peito abrasas escondido;

Tu, que em um rosto corres desatado;

Quando fogo, em cristais aprisionado;

Quando cristal, em chamas derretido.



Se és fogo, como passas brandamente,

Se és neve, como queimas com porfia?

Mas ai, que andou Amor em ti prudente!



Pois para temperar a tirania,

Como quis que aqui fosse a neve ardente,

Permitiu parecesse a chama fria.



 

Referência:

MATOS, Gregório de. In:  Wisnik, José Miguel. Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 218.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

18 de abril: DIA NACIONAL DO LIVRO INFANTIL


Dia 18 de abril foi instituído como o dia nacional da LIVRO infantil, em homenagem à Monteiro Lobato. Ele nasceu em 18 de abril de 1882.

Há um capítulo em  A Reforma da Natureza intitulado O livro comestível em que a  Emília propõe criar um livro comestível. E, conversando com a Rãzinha a respeito do seu projeto, ela diz assim:


- Muito simples. Em vez de impressos em papel de madeira, que só é comestível para o caruncho, eu farei os livros impressos em um papel fabricado de trigo e muito bem temperado. A tinta será estudada pelos químicos - uma tinta que não faça mal para o estômago. O leitor vai lendo o livro e comendo as folhas; lê uma, rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura está almoçado ou jantado. Que tal?



A Rãzinha gostou tanto da ideia que até lambeu os beiços.



- Ótimo, Emília! Isto é mais que uma ideia-mãe. E cada capítulo do livro será feito com papel de um certo gosto. As primeiras páginas terão gosto de sopa; as seguintes terão gosto de salada, de assado, de arroz, de tutu de feijão com torresmos. As últimas serão as da sobremesa - gosto de manjar branco, de pudim de laranja, de doce de batata.



- E as folhas do índice - disse Emília - terão gosto de café - serão o cafezinho final do leitor. Dizem que o livro é o pão do espírito. Por que não ser também pão do corpo? As vantagens seriam imensas. Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas carrocinhas, juntamente com o pão e o leite.



- Nem precisaria mais pão, Emília! O velho pão viraria livro. O Livro-pão, o Pão-livro. Quem souber ler, lê o livro e depois o come: quem não souber ler come-o só, sem ler. Desse modo o livro pode ter entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos. Otimíssima ideia, Emília!



- Sim - disse esta muito satisfeita com o entusiasmo da Rã. - Porque, afinal de contas, isso de fazer os livros só comíveis para o caruncho é bobagem, podemos fazê-los comíveis para nós também.



-  E quem deu a você essa ideia, Emília?



- Foi o raciocínio. O livro existe para ser lido, não é? Mas depois que o lemos e ficamos com toda a história na cabeça, o livro se torna uma inutilidade na casa. Ora, tornando-se comestível, diminuímos uma inutilidade.

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Monteiro Lobato
 
 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

"O LIVRO COMESTÍVEL" por Monteiro Lobato



 
 IX







A maior parte das ideias da Rã eram desse tipo. Pareciam brincadeiras, e isso irritava Emília, que estava levando muito a sério o seu projeto de reforma do mundo. Emília sempre foi uma criaturinha muito séria e convencida. Não fazia nada de brincadeira.

- Parece incrível, Rã! - disse ela. - Chamei você para me ajudar com a ideia da reforma, mas até agora não saiu dessa cabecinha uma só coisa aproveitável – só “desmoralizações...”

- Isso não! A ideia das tetas com torneiras na vaca Mocha foi minha e você gostou muito. A da pulga também. 

- Só essas. Todas as outras eu tive que jogar no lixo. Vamos ver mais uma coisa. Que acha que devemos fazer para a reforma dos livros?

A Rãzinha pensou, pensou e não se lembrou de nada:

- Não sei! Parecem-me bem como estão.

- Pois eu tenho uma ideia muito boa - disse Emília. - Fazer um livro comestível.

- Que história é essa?

- Muito simples. Em vez de impressos em papel de madeira, que só é comestível para o caruncho, eu farei os livros impressos em um papel fabricado de trigo e muito bem temperado. A tinta será estudada pelos químicos - uma tinta que não faça mal para o estômago. O leitor vai lendo o livro e comendo as folhas; lê uma, rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura está almoçado ou jantado. Que tal?

A Rãzinha gostou tanto da ideia que até lambeu os beiços.

- Ótimo, Emília! Isto é mais que uma ideia-mãe. E cada capítulo do livro será feito com papel de um certo gosto. As primeiras páginas terão gosto de sopa; as seguintes terão gosto de salada, de assado, de arroz, de tutu de feijão com torresmos. As últimas serão as da sobremesa - gosto de manjar branco, de pudim de laranja, de doce de batata.

- E as folhas do índice - disse Emília - terão gosto de café - serão o cafezinho final do leitor. Dizem que o livro é o pão do espírito. Por que não ser também pão do corpo? As vantagens seriam imensas. Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas carrocinhas, juntamente com o pão e o leite.

- Nem precisaria mais pão, Emília! O velho pão viraria livro. O Livro-pão, o Pão-livro. Quem souber ler, lê o livro e depois o come: quem não souber ler come-o só, sem ler. Desse modo o livro pode ter entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos. Otimíssima ideia, Emília!

- Sim - disse esta muito satisfeita com o entusiasmo da Rã. - Porque, afinal de contas, isso de fazer os livros só comíveis para o caruncho é bobagem, podemos fazê-los comíveis para nós também.

-  E quem deu a você essa ideia, Emília?

- Foi o raciocínio. O livro existe para ser lido, não é? Mas depois que o lemos e ficamos com toda a história na cabeça, o livro se torna uma inutilidade na casa. Ora, tornando-se comestível, diminuímos uma inutilidade.  

- E quando a gente quiser reler um livro?

- Compra outro, do mesmo modo que compramos outro pão todos os dias.

A ideia, depois de discutida em todos os seus aspectos, foi aprovada, e Emília reformou toda a biblioteca de Dona Benta. Fez um papel gostosíssimo e de muito fácil digestão, com sabor e cheiro bastante variados, de modo que todos os paladares se satisfizessem. Só que não reformou os dicionários e outros livros de consulta. Emília pensava em tudo.

Também reformou muita coisa na casa. Por meio de cordas e carretilhas as camas subiam para o forro de manhã, depois de desocupadas, a fim de aumentar o espaço dos cômodos. As fechaduras não precisavam de chaves; bastava que as pessoas pusessem a boca no buraco e dissessem: “Sésamo, abre-te” e elas se abriam por si mesmas. 

-E os mudos? – perguntou a Rãzinha – Como vão arrumar-se? Só se eles andarem com um vitrola no bolso, que pronuncie por eles a palavra Sésamo.

Emília atrapalhou-se com o caso dos mudos e deixou para resolver depois.

O leite a ferver ao fogo, o qual imediatamente parava de agir. O mesmo com todas as comidas – e dessa maneira acabou-se a desagradável história do “feijão com bispo”.

E tantas coisas as duas fizeram, que se fôssemos contar metade, teríamos de encher dois volumes. Lá pelo fim da semana o Sítio do Picapau estava totalmente transformado, não dando a menor ideia do antigo. Foi por essa ocasião que chegou carta de Dona Benta anunciando a volta. 

-       -        “Já concluímos o nosso serviço na Europa – dizia ela – Deixamos o continente transformado num perfeito sítio – com tudo direitinho e todos contentes e felizes. A comissão que nos trouxe vai reconduzir-nos para aí novamente. Devemos chegar na próxima segunda-feira e espero encontrar tudo em ordem”.

Emília leu a carta para a Rãzinha, dizendo: É uma danada, esta velha! Foi lá e fez o que todos aqueles ditadores e rei não conseguiram. Temos agora de preparar a casa para recebê-la.







(LOBATO, Monteiro. O livro comestível. In: A Reforma da Natureza. 27ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p. 21-23)