segunda-feira, 29 de julho de 2013

UM APÓLOGO por Machado de Assis





Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:



— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?



— Deixe-me, senhora.



— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.



— Que cabeça, senhora?  A senhora não é alfinete, é agulha.  Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.



— Mas você é orgulhosa.



— Decerto que sou.



— Mas por quê?



— É boa!  Porque coso.  Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?



— Você?  Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?



— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...



— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...



— Também os batedores vão adiante do imperador.



— Você é imperador?



— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...



Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:



— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...



A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.



Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:



— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?  Vamos, diga lá.



Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:



— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.



Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:



— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!





 

domingo, 28 de julho de 2013

segunda-feira, 15 de julho de 2013

"QUE PRESENTE TE DAR?" por Affonso Romano de Sant'Anna






Esta semana, li um livro de crônicas que é uma verdadeira delícia!!
Aliás,  uma excelente dica  para presentear alguém!!
Entre as reflexões do autor, encontramos a respeito do amor, da mulher, dos filhos, do ato de envelhecer...
Enfim, são crônicas de amor e outros afetos, conforme o título do livro...
Assim, como aperitivo, vou servir esta crônica do livro:


"Que presente te dar?"
 Que presente te darei, eu que tanto quero e pouco dou, porque mesquinho, egoísta, distraído não te cumulo daquilo que deveria cumular?

Deveria desatar inúmeros presentes ao pé da árvore, entreabrindo jóias, tecidos,  requintados e pessoais objetos, ou deveria dar-te o que não posso buscar lá fora, mas o que  em mim está  fechado e mal  sei desembrulhar?

Gostaria de dar-te coisas naturais, feitas com a mão, como fazem os camponeses, os artesãos, como faz a mulher  que ama e prepara o  Natal com seus  dedos e receitas, adornos e  atenção.

Te dar, talvez, um pedaço de praia primitiva, como aquelas do Nordeste,ou de antigamente - Búzios e Cabo Frio; um pedaço de mar das Ilhas do Caribe,onde a água e o amor são transparentes e onde a areia é fina e brilhante e, sozinhos,  habitam a  eternidade,  os amantes.

Te dar aquele verso de canção um dia ouvida não sei mais onde, se numa tarde de chuva, se entre os lençóis cansados;  um verso, uma  canção ou talvez o puro som de um saxofone ao  fim do dia, som que  tem qualquer coisa de promessa e melancolia.

Fugir uma tarde contigo para os motéis, quando todos os homens se perdem nos papéis e escritórios, números e tensões: fugir contigo para uma tarde assim, um espaço de amor entreaberto na peça que nos prega a burocracia dos gestos.

Gravar numa fita as canções que me fazem lembrar de ti e ouvi-las, ou tocar de algum modo, em algum cassete as frases que disseste, que em mim gravaste: frases  líricas, precisas, que  quando estou  cinza, relembro e  me  iluminam.

Te enviar todos os cartões que colecionas, de todos os lugares que conheço ou que tu nem imaginas, ir a essas  paisagens e ilhas e habitá-las com os  selos e palavras de intermitente paixão.

Dar-te aquela casa de campo entre montanhas, aquele amor entre a neblina, aquele espaço fora do mundo, fora de outros espaços, sem telefone, sem estranhas ligações, para ali nos ligarmos um no outro em una e dupla solidão.

Se queres jóias, te darei. Aqueles corais que vendem na Ponte Vecchia, em Florença; o âmbar ou as pérolas que expõem nas lojas do Havaí; aquelas pedras de vidro para iridescentes colares, que vendem em Atenas, ao pé da Plaka, ao pé da Acrópole, que amorosa nos contempla.

Te dar numa viagem os castelos do Loire, e sair comendo e rindo juntos no roteiro gastronômico franco-italiano; ali comendo e aqueles vinhos bebendo, de tudo nos  esquecendo, sobretudo dos remorsos tropicais de quem tem sempre ao lado um faminto desamparado, de culpa nos ferindo.

Te darei flores. Sempre planejei fazer isto.Tão simples: de manhã acordar displicente e começar a colher flores sob a cama. Ir tirando buquês de  rosas,  margaridas,  vasos  de íris, orquídeas que estão desabrochando e, uma a uma, de flores ir te cumulando. E amanhecendo dirás: o amado hoje está doce, seu amor aflorou e está me perfumando.

Escrever bilhetes pela casa inteira, metê-los entre as roupas, armários, prateleiras, pra que na minha ausência comeces a desdobrar recados daquele que nunca se ausentou, embora esse ar de quem vive partindo, mas, se alguma vez partiu, partido foi para reunido regressar.

Te dar um gesto simples. Passar a mão de repente sobre tua mão, como se apalpa a  vida ou fruto, que pede para ser colhido.

Te dar um olhar, não aquele olhar distraído, alienado de quem está nas coisas prosaicas perdido, mas um olhar de quem chegou  inteiro e que se entrega enternecido e desamparado dizendo: olha,  sou  teu,  agora  veja  lá o  que  vai  fazer  comigo!