quarta-feira, 27 de junho de 2012

"A ESPOSA" por Sara Menck



"Eles foram casados durantes alguns anos. Tiveram quatros filhos. Dois genros e duas noras, um neto e duas netas.

O que sempre os diferenciava dos demais casais e amigos  era o relacionamento  singular. Eram felizes de um jeito por demais especial.

Conheceram-se na cantina da universidade e, desde o primeiro encontro, riam muito. Conversavam e riam. Três dias após um lanche na cantina, estavam namorando sério.  Ela era alta, loira, cabelos e pernas longas. Ria o riso sonoro descansado e bom de se ouvir. Ele era sério demais. Mais alto que ela, moreno e cabelos encaracolados. O sorriso largo e comprometido com a vida.

  No inicio do namoro, ria muito do jeito dele a abraçar enquanto caminhavam para a faculdade. Ele a aconchegava como se fosse algo feito há muito tempo. Ela descansava  a cabeça nos ombros e conversavam e riam durante todo o percurso.

Depois começou a ficar bom demais sairem juntos. Estar juntos. Andar de mãos dadas até que, ele, num supetão a puxava para si e ela ria alto e feliz e se acertavam na ternura daquele abraço e ele achava graça naquele riso.

Logo ele descobriu que ela era sensível demais e chorava por pouca coisa. Pra que isso? Que bobagem chorar assim. Mas ela chorava e ele preferia o som do riso alto, espontâneo e bom. Melhor deixá-la não chorar.

O casamento veio depois da formatura. Juntos escolheram cada detalhe de tudo o que queriam no inicio do matrimônio.  Viajaram em lua de mel e jamais esqueceram a alegria de tudo o que vivenciaram naquela viagem. Gostavam de coisas simples e se deliciavam com o cachorro quente na hora do lanche, sentados em um banco de frente para o mar.

Ele a fotografava de todos os jeitos. Feliz. Sem graça. Brava. Escovando os dentes. Derramando o suco. Chorando por bobagens. Fazendo caretas. Implorando para não ser fotografada. Caindo de bicicleta. Machucando a perna. Esperando no hospital. Fazendo curativo. Silenciando... A cara amarrada... O sono profundo... A faxina na cozinha... O sorriso para a foto... Chegando do cabeleireiro...

Vieram os filhos. Os dois engravidavam. Cada gravidez vivenciada era única. Chorava-se muito naqueles meses e havia o abraço que forte e paciente a aconchegava. Tudo iria ficar bem. E ficaram quando vieram os branquinhos de cabelos cacheados.

Com as crianças, a mãe se tornara mais dedicada, mais brava, mais exigente, mais amável, mais descompensada. O pai, algumas vezes, impaciente, só se rendia quando brotavam as lágrimas nos olhos da mãe. Não chore, por favor!

A família ficou grande. Eram seis que ficavam juntos para ver os filmes durante as férias, nos dias de chuva. Comer pipoca na cama. Derramar coca no pijama. Empurrar o irmãozinho que caia. O travesseiro que era rasgado. A mamadeira mal fechada. O leite derramado no lençol branco e novo. O choro e o riso e o grito e o filme.  E o pai a fotografar o inusitado.

As formaturas e os casamentos das crianças foram somados, multiplicados e divididos nas intermináveis contas, nas bonitas festas. E valia a pena vê-la tão linda. Valia o sorriso e os choros das diversas emoções.  E as fotografias da orgulhosa mãe eram sempre exibidas de todos os jeitos. Desde o abraço apertado na primeira filha noiva, como se estivessem arrancando algo da mãe sogra. Da lágrima que docemente corria nos olhos e fluia do coração o tudo de bom ao novo casal.


Com os netos, não foi difícil ver lágrimas serem arrancadas e sorrisos admirados daqueles olhos que sempre mais o encantavam. E vinham os lindos traços da idade, apertando devagar cada cantinho do olhar.


E veio a doença e o medo e o silencio. Tinham de ser fortes, mas as palavras faladas eram feridas. O som era baixo. Difícil dizer, querer, compreender, aceitar, entender aquilo a dois. Por isso, os bilhetes cheios de cumplicidades e palavras ditas sem barulho. Sem machucar ou ferir os ouvidos com as doídas verdades.  Das pequenas cartinhas, depois de lidas, o choro e o riso. O conforto nos abraços que tão certos se encaixavam.  Aos poucos, a resignação e a certeza de que chegara a hora e fizera necessária a separação.

A lágrima mudou de olhos e correu abundante e silenciosa na face do homem. Ninguém fotografou a dor. Adormeceram nele também os braços. O coração quis enfraquecer por demais. Havia uma falta no ar. Havia a história gravada em fotos e tantas vezes a recontara para si mesmo.

Onde estava o som daquele riso? A cor daqueles cabelos? A carranca? O beijo? As mãos acenando? O último bilhete? Quisera chorar ainda uma vez junto com ela. Agora ria para os filhos, filhas, genros, noras e netos e chorava sozinho.

Vasculhou a casa. Tinha certeza de que havia um bilhete de despedida. Não fizera a despedida, porque sabia que tinha de ser daquele jeito, sem barulho.

Um dia, olhou no fundo de uma gaveta onde havia um livro. Abriu. Lá estava o envelope e nele o  bilhete. A caligrafia ligeiramente diferente; por certo, as mãos tremeram.

 Obrigada pela vida dividida comigo. Pela linda família. Jogue fora as fotos horrorosas; guarde apenas as bonitas. Não chore por mim, porque todas as minhas lágrimas foram rios de felicidades que desceram dos meus olhos e encantaram a nossa vida, só porque o melhor dela  - a vida - foi chorar para ter o seu abraço. Perdoe a minha doença; não dei conta de exterminá-la, mas dei conta de ter o seu amor e te amar durante a nossa eternidade”.

Sara Maria      07/2012.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

"UMA GALINHA" por Clarice Lispector


Neste  conto, o narrador apresenta ao leitor, de um lado,  ações externas como a fuga da uma galinha e, por outro, o despertar para a questão da maternidade. Entra em cena, também, de modo bastante irônico, o ser masculino como alguém superior. Isso, claro, de acordo com um olhar de uma sociedade machista. 

Vamos ao conto??

"Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. 

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. 

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos."






In: 

Clarice Lispector 




sábado, 9 de junho de 2012

O VERBO NO INFINITO por Vinicius de Moraes




Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar 


Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar. 


E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito 


E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito
...”
Vinicius de Moraes
Vinicius de Moraes 

terça-feira, 5 de junho de 2012

"APELO" por Vinicius de Moraes


Ah, meu amor não vás embora 
Vê a vida como chora 
Vê que triste esta canção 
Ah, eu te peço não te ausentes 
Porque a dor que agora sentes 
Só se esquece no perdão 

Ah, minha amada, me perdoa 
Pois embora ainda te doa 
A tristeza que causei 
Eu te suplico não destruas 
Tantas coisas que são tuas 
Por um mal que já paguei 

Ah, minha amada, se soubesses 
Da tristeza que há nas preces 
Que a chorar te faço eu 
Se tu soubesses um momento 
Todo o arrependimento 
Como tudo entristeceu 

Se tu soubesses como é triste 
Eu saber que tu partiste 
Sem sequer dizer adeus 
Ah, meu amor, tu voltarias 
E de novo cairias 
A chorar nos braços meus.”

Vinicius de Moraes 


sexta-feira, 1 de junho de 2012

“SONETO DO AMOR TOTAL” por Vinicius de Moraes




Referência:

MORAES, Vinicius de. O encontro do cotidiano. In: Poesia completa e prosa. Organização de
Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. p. 310.